A Tirania do Corpo
Incluído em 01/06/2005
A psiquiatria sempre se preocupou com as influências culturais sobre a saúde mental. Até que ponto os hábitos, costumes e valores sociais influem no desenvolvimento das doenças mentais? Em épocas passadas, as grandes comoções histéricas dominavam os sintomas psíquicos e as emoções decorrentes do conflito humano, predominantemente no sexo feminino. Eram produzidas crises onde se misturavam teatralidade humana, bruxaria e influências demoníacas.
Em épocas mais recentes a angústia era traduzida em grandes conversões pseudoneurológicas, como as paralisias, cegueiras e afonias histéricas. Quantas paralisias e afonias desse tipo (pré Ressonância Magnética) alimentaram os cultos milagreiros. A fé era o santo remédio e misturar manga com leite matava de congestão, assim como, olhar no espelho ou tomar banho depois de comer podia entortar bocas.
Sem dúvida, alguma coisa boa aconteceu recentemente com a maior popularização dos conhecimentos psiquiátricos. Um dos exemplos é o que se sabe, leigamente, em relação à Síndrome do Pânico, depressão, Transtorno Obsessivo-Compulsivo e outros. Houve uma espécie de desestigmatização da Ansiedade Aguda ou da Angústia Patológica. Sim, porque as manifestações da angústia de antes costumavam ser consideradas exemplos de “franqueza mental”, falta de pensamentos positivos, falta de ter o que fazer e coisas do gênero.
Mas hoje, com a universalização dos conceitos psiquiátricos, sabe-se que o estresse e a ansiedade podem acometer qualquer pessoa “de bem”, sem que seja considerada doida ou mentalmente fraca. A Síndrome do Pânico, os Transtornos Fóbicos e outros, de fato, representam aspectos do psiquismo humano que acabam sempre encontrando uma via de manifestação culturalmente complacente e aceitável. E atualmente, apesar desses quadros fóbico-ansiosos continuarem sendo os principais responsáveis pela movimentação dos consultórios de psiquiatria, começa a aparecer em crescente velocidade os problemas decorrentes da obsessão pelo corpo perfeito.
Algumas mocinhas já consideram impossível ser felizes e, ao mesmo tempo, mostrar uma dobrinha na barriga quando sentam. Alguns mocinhos sacrificam boa parte da capacidade de aculturação que a natureza nos deu, em intermináveis e obsessivas horas “puxando ferro” nas academias de musculação. Isso sem contar com a comodidade que algumas pessoas gozam por poderem atribuir a um pequeno excesso de gordura na cintura, a um nariz ligeiramente mais profuso ou a um seio menos farto, toda a responsabilidade pelos fracassos em conquistar o sexo oposto. Parece estar havendo uma locação anatômica da felicidade, ora no seio, ora no nariz, ora na balança.
O problema não seria grave se a preocupação com o corpo não fosse uma obsessão capaz de escravizar, capaz de entorpecer pessoas em busca de defeitos e dobrinhas aqui e ali, imaginando que se tirasse um pouquinho daqui, colocasse um tantinho a mais ali tudo ficaria melhor, mais perfeito, mais sarado. Pessoas têm como sonho de consumo a cirurgia plástica, a lipoaspiração ou, como se diz, a lipo-escultura (palavrinha mágica que mistura a perda da gordura com uma coisa artística). Algumas pessoas não se envergonham em dizer (não se envergonham por causa do apoio cultural) que se “pudessem fariam uma plástica geral, trocariam tudo, modificariam tudo”. Quer dizer, são pessoas infelizes com o próprio corpo.
Alguns podem contra argumentar que a pessoa não tem toda culpa por se submeter a esse escravagismo estético. A censura e a vigilância culturais seriam os grandes carrascos da prisão em estreitas calças jeans a que todos somos submetidos. Mas aí poderíamos parodiar Sartre: “– Se não podemos ser responsáveis por tudo aquilo que a cultura e a sociedade nos fez, seremos sim muito responsáveis pelo que faremos com tudo aquilo que a cultura e a sociedade nos fez”.
Alguns dos reflexos psiquiátricos da submissão da felicidade humana ao corpo perfeito, malhado, esculpido, e com músculos bem definidos tem sido a anorexia e a bulimia, mais comum do lado feminino, e a vigorexia, mais comum em homens. Mas outros reflexos psíquicos não tão patológicos também fazem parte da obsessão pelo corpo, como a privação de contatos sociais, complexos de inferioridade, submissão aos “tratamentos milagrosos” (e caros), retraimento no contacto com o sexo oposto, consumo de medicamentos com severos efeitos colaterais, etc.
Ser jovem, aliás, ser eternamente jovem, é a principal aspiração existencial de algumas pessoas, atualmente acrescida do ideal de beleza de ser magro(a), malhado(a) e esbelto(a). No Brasil, o conceito de beleza está associado a ser jovem, como se fosse impossível encontrar o belo fora da juventude. Talvez por isso nosso país esteja entre os primeiros no ranking da Cirurgia Plástica Rejuvenescedora, além de ser também um voraz consumidor de medicamentos para emagrecer. É triste, mas às vezes as pessoas acham que o mais importante é o que aparentam, e não o que são de fato. E é comum dizer-se “– Nossa, você já tem 60 anos? Mas não parece...”. Não parece como? Baseado em que? Ora essa atitude invalida todas as experiências vividas para se chegar aos sessenta, que não se consegue aos trinta ou quarenta.
“Bela, jovem e magra, custe o que custar”. Ser bonita, fazer um book e tentar ser famosa através dos atributos físicos... Este é o conceito ideal que algumas meninas, adolescentes, jovens e mulheres perseguem incessantemente. Modelos, artistas de cinema e de televisão são os protótipos copiados por elas, colocando em segundo plano outros atributos que não os do corpo perfeito.
De fato, romper esses estereótipos culturais tem sido muito difícil. As pessoas são catalogadas culturalmente e classificadas em categorias sociais; jovens e belas, modernas, avançadas, de atitude, arrojadas, descoladas, enfim, nesse mundo pretensamente liberal e democrático, nessa sociedade que se diz respeitar a individualidade e autenticidade, quem não se enquadrar obrigatoriamente no modelinho da modernidade desejada estará, automaticamente, excluído do mundo das pessoas “de bem”. E um desses modelinhos implica na observância obsessiva dos limites do peso, tiranamente estabelecido por sabe-se-la-quem.
Mas há uma luz (tênue) no fim do túnel e aqueles que conseguem seguir o próprio caminho, emancipados dos estereótipos ou modelinhos culturais, parecem viver muito melhor. Foi o que mostrou uma pesquisa feita em 1995 na Universidade de Edinburgh, na Inglaterra, transformada no livro e comentada na revista Época. O autor, o psicólogo David Weeks, pesquisou, por uma década, pessoas que viviam fora dos padrões - tanto de comportamento quanto estéticos. Foram 789 americanos, 130 britânicos, 25 alemães e 25 neozelandeses. Ao fim, concluiu que os excêntricos eram mais seguros, menos estressados, mais felizes e, por isso, tendiam a viver mais.
Em nossa cultura o conceito de beleza está associado à juventude, como se não existisse o belo fora da juventude. A conseqüência dessa cultura na saúde emocional se vê na ocorrência de alguns transtornos emocionais como, por exemplo, os Transtornos Alimentares (anorexia e a bulimia), Transtorno Dismórfico Corporal, Vigorexia. Isso sem contar a propensão que as pessoas vitimadas pelas restrições sociais impostas pela tirania do corpo têm para desenvolver depressão, algumas vezes levando ao suicídio. Além de tudo isso, a cultura do corpo perfeito acaba promovendo acidentes médicos graves decorrentes do uso abusivo de cirurgias e intervenções estéticas.
A obsessão e/ou dependência ao exercício, chamada de Vigorexia ou Overtraining, em inglês, é um transtorno no qual as pessoas realizam práticas esportivas de forma continua, com uma valorização praticamente religiosa (fanatismo) ou a tal ponto de exigir constantemente seu corpo sem importar com eventuais conseqüências ou contra-indicações, mesmo medicamente orientadas. Outro nome para esse quadro e, mais presente nas classificações internacionais é o Transtorno Dismórfico Corporal
É bastante curioso observar como as patologias mentais ou, no mínimo, os sintomas mentais evoluem e se transformam ao longo do tempo e entre as diversas culturas, mostrando-se sensíveis às mudanças sócio-culturais. A Vigorexia, por exemplo, está nascendo no seio de uma sociedade consumista, competitiva, frívola até certo ponto e onde o culto à imagem acaba adquirindo, praticamente, a categoria de religião.
A Anorexia Nervosa, por sua vez, é um transtorno emocional que consiste em uma perda de peso derivada e um intenso temor da obesidade. Esses sentimentos têm como conseqüência uma serie de condutas anômalas. A Anorexia Nervosa acomete preferentemente a mulheres jovens entre 14 e 18 anos. A Bulimia Nervosa é um transtorno mental que se caracteriza por episódios repetidos de ingestão excessiva de alimentos num curto espaço de tempo (as crises bulímicas), seguido por uma preocupação exagerada sobre o controle do peso corporal, preocupação esta que leva a pessoa a adotar condutas inadequadas e perigosas para sua saúde, como por exemplo o vômito freqüente, uso abusivo de laxantes e diuréticos. A Bulimia Nervosa também acomete preferentemente a mulheres jovens ainda que algo maiores que em Anorexia.
Alem dos transtornos estimulados pela conjuntura cultural, há ainda o problema imposto às pessoas com sobrepeso (veja Obesidade). Existem dois agravantes sociais cruciais influindo na vida das pessoas acima do peso ideal; uma influência francamente recriminadora e de exclusão social dos obesos e outra, absolutamente estimulante para a manutenção e desenvolvimento da própria obesidade.
É grosseira e desumana discriminação estética imposta pelos parâmetros ditatoriais das medidas, juntamente com o julgamento do obeso como uma pessoa que não tem força de vontade e que ele é assim por ser preguiçoso. Cogitar deixa-lo do jeito que estiver, principalmente se estiver se sentindo bem com isso, nem pensar. O policiamento cultural é intenso. O enfoque discriminatório pode gerar preconceito em relação à pessoa obesa, acaba proporcionando dificuldades para relacionamentos sociais e afetivos, problemas para encontrar emprego e até quadros psiquiátricos gravemente depressivos e conseqüentes a essa marginalização.
Clinicamente a obesidade pode ser considerada hoje uma doença crônica, capaz de provocar ou acelerar o desenvolvimento de outras doenças e que concorre para uma morte mais precocemente. Porém, existem inúmeros estados ou situações entre a obesidade e o simples sobrepeso e as regras de um estado não deveriam ser as mesmas do outro, em termos de felicidade. A obesidade, de fato, deve ser prevenida e corrigida, tendo em vista os sabidos efeitos deletérios sobre a saúde e a qualidade de vida. O sobrepeso, entretanto, deve ser melhor avaliado à luz das repercussões culturais, das restrições sociais e da baixa autoestima que esses fatores estimulam.
Paradoxalmente, em franca contra-posição à tendência repulsiva da sociedade contra a obesidade, a ingestão excessiva de alimentos, desde criança, é bastante estimulada por nossa cultura altamente consumista. A armadilha está no forte apelo cultural através da propaganda, do marketing e da mídia publicitária para a ingestão excessiva de alimentos supérfluos, como balas, bolachas, salgadinhos, cerveja, sorvetes, etc. O próprio relacionamento social concorre para a ingestão de alimentos, como por exemplo, o costume de agraciarmos nossas visitas, amigos, clientes ou grupos culturais com jantares, lanches, happy hour, cafezinho, bolo, etc.
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