David Le Breton, antropólogo francês, é um especialista do corpo: corpo singular, múltiplo, ferido. Corpo como obra de arte em perigo! Autor, entre outros, de Antropologia da Dor, Antropologia do Corpo e Modernidade, A Sociologia do Corpo, Antropologia das Emoções e Adeus ao Corpo, Le Breton é referência para aqueles que trabalham com o corpo.
Segundo Le Breton, o corpo tornou-se um acessório, uma prótese marcado por uma subjetividade lixo, uma bula, um kit: ''É a formidável convergência de práticas relativamente recentes, ou de sucesso recente, que faz com que o corpo seja hoje muitas vezes vivido como um acessório da presença (...) O corpo é um objeto imperfeito, um rascunho a ser corrigido. Vejam o sucesso da cirurgia estética: trata-se de fato de mudar seu corpo para mudar sua vida''.
Nunca o corpo-descartável foi tão exaltado como na contemporaneidade. Órgãos sem corpos são fixações parciais que massacram o próprio corpo. Boca, seios, olhos, pernas, genitália esfacelada, moldada: não se trata mais de um corpo, mas de um acumulado de órgãos colados em algo que se denomina corpo. Corpo-peneira, corpo trespassado pelas flechas (bisturi), corpo-penetrado pelas seringas, o sujeito-corpo-descartável paga o preço de sua beleza.
Para além da análise do discurso científico, biológico ou informático sobre o corpo, o autor aponta o perigo de um discurso de aperfeiçoamento transformando-o em um cibercorpo - ligação na carne do homem de procedimentos informativos sob forma de chip. Trata-se de um saber científico que se apresenta sob o signo de uma promessa messiânica - os velhos ficarão novos, os feios belos, todos alcançarão a eterna juventude -, em que alguns cientistas são os ''novos padres'', criadores de uma ''cibersexualidade''. Essa poderia engendrar na relação com o outro a abolição da própria alteridade: o outro é afastado em proveito dos signos de sua presença.
O corpo à distância pode ser um disquete, um programa, um site, um Eros eletrônico. O sexo virtual, sexo sem corpo, sexo fantasmático, torna-se o ''bom'' sexo, o sem-sexo, o sexo rei! ''Para alguns expoentes da cibercultura americana, a sexualidade é algo superado. Eles a consideram como sujeira'', miasma, putrefação. À estética do belo a qualquer preço, junta-se o fundamentalismo da era virtual.
No momento em que a biologia, a informática, a tecnociência impõem a cibersexualidade como modelo - um sexo sem corpo, um sexo contra o corpo -, faz-se necessário retornar à filosofia. Revisitar alguns filósofos do corpo, do desejo e do prazer, trilogia que anuncia um outro-epidérmico, para além da consciência e do biopoder domadores de produções inconscientes de um saber sobre o corpo que supera a tirania de uma estética do corpo contra o próprio corpo.
O que é arrebatador, diz Nietzsche, é o corpo: ''(...) não nos fatigamos de nos maravilhar com a idéia de que o corpo humano tornou-se possível''. Deleuze: ''Espinosa propõe aos filósofos um novo modelo: o corpo (...): não sabemos o que pode o corpo''.
Eis a questão: reencontrar o ''sentido da carne'', ''o texto primitivo'' do homem ''natural'', mediante uma solicitação sempre mais exigente do inconsciente em detrimento da Razão, a louca da casa: ''A Razão não pode ensinar nada que seja contra a Natureza'', escreve Espinosa.
Adeus ao Corpo, publicado pela editora Papirus, aponta o paradoxo de uma modernidade cujo discurso aparente faz a apologia do corpo para melhor esvaziá-lo, transformando-o em mercadoria e impondo um simulacro do corpo.
Daniel Lins é professor na Universidade Federal do Ceará (UFC)
O Povo (09/08/2003)
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